O Burrinho Pedrês é um conto fundamental dentro da coletânea que compõe Sagarana, no entanto, trata-se de um conto dentro de um livro bastante difícil. Isso porque o universo de Guimarães Rosa é absolutamente peculiar, não só na sua maneira de entender a vida, como na linguagem que o autor cria para expressá-la. Tem-se um português escrito dentro de um estilo bastante original, muito próximo da tradição oral pertencente ao povo que vivia no imenso sertão do Brasil. Essa linguagem oralizada e sem contato com os formalismos da norma culta  foi adquirida, segundo Rosa, após semanas de viagens com sertanejos,  a fim de aprendê-la e, sobretudo, vivenciá-la e assim pudesse registrar as histórias que tinha em mente.

Parece um português simples, mas não é. O autor era um homem de grande cultura, médico, embaixador do Brasil na Alemanha, de 1938 a 1942, no auge do nazismo. Ele e sua esposa Aracy salvaram muitas pessoas, quase todos judeus, das garras do nazismo insano que por lá se implantava. Foi testemunha ocular das atrocidades perpetradas na Alemanha e em várias partes da Europa.

Era um filólogo por paixão. Colecionava palavras nacionais e estrangeiras, neologismos, como também criava e reproduzia frases e pensamentos de cunho popular, mas, cujo registro, aprofundou nossa língua a uma condição de representação simbólica do homem do sertão, cuja sabedoria vem das dificuldades de se viver em uma natureza rude, onde a solidão é impossível, porque não se sobrevive simplesmente. Frente a esse contexto de dependência surgem os coronéis, que exploram sem dó a mão de obra brateada e penosa da lida diária, ou surgem os chefes de bandos, mais conhecidos como cangaceiros, que são homens sem-terra, de hábitos errantes, que se tornam respeitados pela crueldade com que tratam seus inimigos e pela lealdade quase medieval do bando ao seu líder.

Este conto foi criado dentro desse sertão distante e tem como pano de fundo a missão de se levar quinhentas cabeças de gado de uma fazenda até os vagões de trens que levarão a boiada ao seu destino final.

Parece interessante, contudo, analisar também o título: o que é pedrês? É um cinza salpicado de branco ou um preto salpicado de branco e preto? É tão simples que não tem uma cor definida, é uma cor de quase sujeira. No conto, trata-se de um burrinho velho, muito vivido e que adora ficar no seu canto sem ser incomodado. Na realidade,  o burro é visto como mero animal de carga, muito subestimado com relação à beleza e ao porte cavalo. Basta lembrar que a palavra burro, em português, serve para designar uma pessoa considerada com pouca inteligência. Esse burrinho, por sua vez, terá uma história com um desfecho bem diferente. À sua maneira, revelará ser bastante inteligente por saber lidar com as dificuldades da vida melhor do que ninguém, seja um humano seja um cavalo.

Estava lá um burro qualquer. Sua origem era incerta. Depois de uma vida com muitos donos e privações, saiu das mãos de ciganos e foi parar numa grande fazenda, típica do sertão: onde tudo era enorme e despropositado: três mil alqueires de terra, toda em pastos. Um grande latifundiário, que para manter sua imensa propriedade, tinha que ter muita autoridade, tinha que transmitir medo e mando. Seu nome: Major Saulo. Aliás, o título de major pouco tem a ver com a carreira militar, mas sim, com uma designação de respeito no tratamento entre patrão e empregados, revelando profunda hierarquia.

Através da narrativa, o autor conta, mas sempre mantendo o encantamento e o interesse do leitor, que o boi tem personalidade própria e rude, que por temperamento  e pelas grandes dimensões físicas,  nunca será amigo do homem, ou seja, jamais será um animal de fato domesticado. Por isso,  major Saulo, para ser líder e dono de tantas cabeças, tem que conhecer muito de boi e de gente. Mesmo simples, sem nem saber fazer sequer a tabuada, enriquece muito porque sua lida exige dele sobretudo uma profunda empatia com os vaqueiros e um verdadeiro amor à terra. Há de se ser sagaz e ter uma intuição afinadíssima para compreender o sertão, os bois e os homens que o servem.

Com essa personalidade toda de autoridade e respeito, de repente, major Saulo exige que um de seus homens vá montado no burro. Ninguém entende o porquê disso, acham que é só para humilhar um camarada. Manico, o eleito para ir montado nele, não consegue compreender essa ordem. Na verdade, nem mesmo major Saulo entende, mas sua intuição diz que ele não irá se arrepender de levá-lo.

São só quatro léguas: o João Manico, que é o mais leviano, pode ir nele. Há-há… Agora, Francolim, vá-s’embora, que eu já estou com muita preguiça de você.

João Manico não era boiadeiro de alma, mas era bastante perspicaz na observação dos homens, de seus impulsos e humores. Conhecia bem o tipo de gente com que trabalhava e ajudava o major a compreender melhor a sua equipe. Porém, seu braço direito era Francolim, um útil puxa-saco, que não ligava de ser subestimado pelos companheiros, tamanho fervor com que servia seu patrão.

E lá se foram com a boiada. O leitor deve ter em mente a dificuldade que é tocar quinhentas cabeças de bois, pesando quase uma tonelada cada animal por mais de 25 km, sem perder nenhuma rês, mantendo a ordem e o passo. Organizados. Há bois, por exemplo que gostam de empacar, de provocar os outros bois desorganizando o comboio. Há bois rebeldes que fogem de outras boiadas, os chamados maruás, palavra do dialeto de peões da região centro-oeste do Brasil, para designar o touro que se desgarra do rebanho, fugindo para as matas e se tornando selvagem, portanto, muito bravo e com grande porte, pois já passou da época de ser abatido porque acabou livre pelo campo. Além de grandes, ficam tocaiando a boiada só para provocar. Fica-se sabendo que um vaqueiro monta no cavalo porque o boi não respeita um homem a pé devido a desproporcional diferença de tamanho. Por sua vez, o vaqueiro não pode demonstrar medo e tem que mostrar quem manda no chicote ou na vara. Vaqueiro nasce vaqueiro. É um talento nato. E um fazendeiro como major Saulo tem que saber escolher seus homens, reconhecer os talentos de cada um  para valorizar o trabalho e só assim conseguir o  respeito necessário de um líder.

A linguagem da narrativa é muito diferente da nossa. Trata-se de um vocabulário criado longe das cidades, metafórico ao extremo quando é necessário explicar algo mais subjetivo. Há muitos provérbios para expressar o implícito ou revelar fatos consumados da vida humana. Tem-se assim, um vocabulário nascido e criado entre plantas e rios como também pela necessidade de conviver com bois, pastagens e, sobretudo, com poucas pessoas. Há pouca leitura nesses rincões, por isso mesmo pouquíssima escola, presume-se que para um vaqueiro de pouco vale uma educação formal escolarizada.

Major Saulo, quase por intuição, entende que o burro tem que participar do comboio, desse modo, pode ir cavalgando devagar e conversando com seus dois homens de confiança: João Manico e Francolim, deixando para seus mais experientes vaqueiros o trabalho de conduzir a boiada. O tempo está chuvoso, cai muita água que para de repente. Há de se conhecer muito bem aquele lugar e agir com parcimônia e respeito aos perigos. Cai um chuvão daqueles, portanto, há medo da violência do rio e da altura da água. Conforme a narrativa, deve-se atentar para o fato do cavalo não poder sentir as patas flutuando, sem chão. O cavaleiro também fica inseguro porque flutua na sela caso o rio esteja muito cheio e acabará por perder o comando do cavalo.

Passam uma vez pelo rio com certa tranquilidade, desse modo os homens conduzem com êxito os bois aos vagões de trem em que serão transportados para o corte. Todos ficam satisfeitos e recebem seus respectivos pagamentos pela missão arduamente cumprida. Quando o major percebe que tudo deu certo,  retira-se do comboio e parte para encontrar sua família. Os homens mais jovens gostam de sair em busca de diversão para gastar o dinheiro que ganharam na empreitada com cachaças e prostitutas. Só que beber demais acaba sendo muito imprudente, porque cachaça é uma bebida forte que muda personalidades, acentua eancores  e tira demais a atenção.

Na volta dos trens, quando a boiada já havia sido devidamente embarcada, o rio já parecia cheio demais. A correnteza ficara muito forte. João Manico observou as águas e prudentemente desistiu de ultrapassá-lo, ficando no vilarejo. Francolim, embora medroso, sentira-se na necessidade de representar o major e de vigiar o retorno dos homens à fazenda, por isso, mesmo assustado, seguiu os embriagados cavaleiros que enfrentariam a correnteza. Porém, excesso de álcool acabou por tirar-lhes a prudência.  Badu, totalmente bêbado, que montava no franzino burrinho por ter seu cavalo roubado, estimulou o receioso bichinho a entrar no rio com os outros homens imponentemente montados em seus respectivos cavalos. Acontece que os cavalos fortes e jovens se desesperaram frente à correnteza e ao inesperado volume de água que tirou-lhes a segurança do chão, fazendo com que fossem impiedosamente tragados pelo turbulento rio. Vários homens importantes para a fazenda do major Saulo seriam encontrados todos mortos, afogados e levados com seus respectivos cavalos pelas águas turbulentas de um rio instável. Por sua vez, o velho burro, subestimado pela sua velhice e simplicidade, enfrentaria a correnteza com o cuidado e a experiência de quem sabe como a vida funciona, não se desespera quando a água tira-lhe o chão, por isso mesmo acaba por não resistir à correnteza e deixa-se levar, mesmo que para uma margem bem mais distante de seu destino inicial, mas, simplesmente, deixa-se levar rio abaixo. Com sorte, Francolim consegue agarrar-se à cauda do burro e segue pendurado nela. Badu, extremamente bêbado, mal percebe o perigo que enfrenta, mas agarra-se com força ao burro que desce e desce até sentir um barranco sob suas patas. Consegue fixar-se nele e ajeitando-se como podia, sai da correnteza inesperada do rio. Dessa forma, o burro  volta tranquilamente para a fazenda. Ele não só acha o caminho como também salva dois homens, inclusive o braço direito do major, Francolim.

Aqui temos uma história sobre a liderança do major, que exige conhecimento de homens e de animais; sobre a vida do vaqueiro do sertão e sobre a modesta sabedoria do burro. Sabedoria exige maturidade e humildade antes de tudo.

Antes dessa obra, os registros colocam o homem do sertão como alguém conformado com a sua existência sofrida, não como alguém cuja sabedoria é necessária para que a humanidade se alimente e continue. Trata-se de um registro sem julgamentos e de profunda admiração ao sertanejo, a sua  complexa linguagem e a forma de viver desses homens valentes.

A linguagem é difícil de se acostumar, exige um leitor com prática, vivência e espírito aberto. É uma linguagem proverbial, metafórica e com termos diferentes que exige prática de leitura a fim de contextualizar e compreender.